sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O VELHO DA PRAÇA

Ontem deitei-me para dormir, mas a dor em meu estômago não queria dar-me trégua. Então, assim, acordada, veio-me a lembrança de um velhinho que sempre encontrávamos, Vic e eu, na praça em frente de casa, lá no Japão.

Naquela praça, onde as tardes de meia estação passavam sem qualquer urgência, depois das aulas do Vic, notava sempre aquele ancião andando ao redor das árvores. Ele olhava para o topo delas, como quem confere algo, e falava sozinho, ou com elas - nunca soube. Parecia um ritual diário. Depois de rodear as mesmas árvores de sempre, vinha ele até onde quer que eu estivesse e instalava-se ao meu redor. Era complicado...Na absurda maioria das vezes, eu não compreendia aquele senhorzinho de idade avançada, mas ele não tinha pressa para explicar-me. Era persistente em "conversar" comigo, apesar de minha notável limitação. ( Considerando que ele falava sozinho ou, talvez, com árvores, tentar comunicar-se com esta gaijin* não deveria mesmo ser tão ruim.)

Depois de nossa primeira "conversa", quando o vovô soube quem éramos (que vinhamos do Brasil como dekasseguis e que o Vic estudava em escola japonesa), o oditchan** falava-me sobre o tempo, as árvores, os insetos que viviam ali na praça, as promoções do dia nos supermercados do bairro... Algumas vezes, ele também interagia com as crianças, soltava brinquedos presos aos galhos das árvores, pegava cigarras nas mãos para mostrar aos meninos e conversava com eles sobre insetos. O vovô morava ali perto, do outro lado da praça. Numa daquelas casas velhas de lata, pintadas de vermelho (ou cor de vinho?) é que ele vivia.

Aquele oditchan, tinha aparência de gente pobre e sofrida, apesar de seu sorriso constante. Andava sempre em passinhos curtos e rápidos. Usava chinelos de dedo e calças com aspecto encardido. Tinha os dentes estragados. Poucos, aliás.

Outro dia, encontramo-nos, ao acaso, no shopping do bairro. Era verão e já não frequentávamos mais a praça, pois o calor era escaldante...Eu tinha acabado de comprar um sorvete para o Vic e o velhinho, atento, perguntou-me se eu também gostava de sorvete. Disse que sim, sorrindo nervosa, com medo que ele forçasse mais uma daquelas tentativas sofríveis de conversa ... Para o meu alívio, o vovô não estendeu-se no assunto. Partiu. E voltou! Enquanto Vic e eu estávamos sentados num banco, o velho (amigo?) surpreendeu-me com um sorvete de presente. Fiquei muito constrangida, embora grata. Depois disso, num outro dia de verão, encontramos-nos num mercado. Eu já estava de saída quando o velhinho sorridente veio atrás de mim com três sorvetes dizendo: "Um para o pai, um para a mãe e um para o menino..." Cheguei em casa com os sorvetes e contei para os dois que era presente do "oditchan da praça"... Dias depois viemos para o Brasil, supostamente de férias.

Ontem, antes de dormir, lembrei-me dessas coisas e fiquei pensando: o que será que o vovô da praça anda fazendo?


* estrangeira
** vovô