O texto abaixo é do Sakamoto:
Black Friday: Você tem aquela sensação vazia após uma compra inútil?
Tento entender quem tem orgasmo ao comprar algo sem motivo.
Quer dizer, entendo, antropologicamente
falando. Pois comprei, há tempos, um ornitorrinco de pelúcia – o que me trouxe
grande alegria.
No final das contas, a razão é a mesma
de uma ave migratória europeia que vai para o Sul, no inverno, ou os fantasmas
atacarem incessantemente o velho e bom Pac-Man. Ou seja, foram programados para
isso.
Sei que há um milhão de
justificativas que podem ser dadas para tal ato: como a ardente materialização
do desejo, passando pela projeção no objeto de uma série de sentimentos que
você não terá tempo para experimentar por vivência própria (ou alguém aqui acha
que é mais livre ou tem mais estilo por ingerir xarope doce preto com água
gaseificada?) até a simples possibilidade de deixar claro quem está acima no
estrato social via símbolos de status e poder.
(Nossa que coisa mala que acabei de
escrever… Foi mal.)
Gosto da Black Friday, uma sexta-feira
de grandes
descontos – ideia que nasceu nos Estados Unidos
para ocorrer depois do Dia de Ação de Graças e foi importada, para cá, por
razões óbvias. Porque posso atualizar e retomar esse debate do qual gosto
muito.
Alguns sites mais-que-honestos de compras já
estão se preparando para subir o preço em 80% e, assim que virar a meia-noite,
dar um incrível desconto de
75% (para
fugir de ser enganado, recomendo um serviço que o UOL vai prestar, clicando
aqui). Em outros , realmente o bicho do desconto vai pegar. No Brasil e nos
EUA, a rebordosa está programada para este 28 de novembro.
Comprar é importante, gira a economia,
gera empregos , realiza desejos, supre necessidades, compensa frustrações, controla o
povo.
Não raro, a possibilidade de que a
aquisição de um bem esteja no horizonte de uma pessoa dá a ela um sentido para
a sua existência. Bizarro, mas é a vida.
Isso traz ansiedade e esperança para
“hordas de bárbaros'', que aprenderam a entender esses produtos como
passaportes para saírem do ostracismo social.
Por tudo isso, nesta sexta, um pedido:
não compre com o fígado. Ao acordar de manhã, cheque a fatura do seu cartão de
crédito, os extratos bancários e os empréstimos – dos CDCs, passando pelas
consignados até aquela grana que você tomou do amigo e nunca devolveu.
E reflita se o seu emprego está
minimamente garantido pelo próximo ano antes de cair na esbórnia e comprar
aquele descascador eletrônico de ovo cozido que você nunca vai usar, mas que o
cara da TV disse que, sem ele, você é um pária.
Lembre-se: não é a procura que gera
oferta. Mas a publicidade ostensiva sobre a oferta que cria a procura.
Como já disse aqui, não estou peidando
regras ao vento, achando que sou leve feito um elfo.
Tenho meus desejos de consumo. Mas se
está com aquele vazio difícil de preencher ou ficando “transparente'' para seus
amigos e colegas (lembra daquela comercial sem noção de uma marca de
automóveis?), acha que a solução é realmente adquirir um produto e, através
dele, o pacote simbólico de cura e inserção que traz consigo?
Acredita que precisa dar um presente
para alguém a fim de mostrar que o/a ama?
Aliás, você se lembra como escrever
cartas de amor com as próprias mãos, demonstrando o medo e a ansiedade nas
letras enfileiradas?
Não precisamos ser aquilo que compramos.
Ou, melhor, você não precisa comprar para ser alguém, como já disse aqui uma
série de vezes.
Esses objetos de desejo serão realmente
úteis para você? Ou só está procurando um estilo de vida do que gostaria de
ser, mas não pode porque não tem dinheiro ou tempo para isso?
Presenteamos nossos filhos para
demonstrar carinho em nossa ausência achando que isso resolve. Mas, desculpe,
isso não resolve.
Aliás, “o que deveríamos ser'' ou o que “deveríamos viver'' normalmente
não é resultado de uma auto-reflexão, mas de alguém martelando algo em nossa
cabeça, dia após dia, em comerciais, anúncios, novelas e filmes.
Quanto tempo depois de uma compra
impulsiva você percebe que aquilo não lhe trouxe felicidade? E a culpa te
consumiu por dentro (afinal, somos um país cristão ou não somos?) E o horror: o
vazio da falta de significado que aquilo tudo lhe traz dá uma paúra que
antiácido nenhum resolve. Nem aqueles mais perfeitos vendidos na TV.
A “classe baixa com poder de compra mas
ainda fora de patamares mínimos de dignidade, pois não tem acesso a serviços
públicos de qualidade'', conhecida como “nova classe média'', está alcançando a
inclusão social através do consumo. A pessoa deixa de ser vista como uma
ignorante completa, uma estrangeira, porque tem um telefone com tela grande.
Sendo que seria melhor que sua inclusão ocorresse também via a garantia de
serviços de educação, saúde, cultura e lazer de qualidade e as consequências
positivas que isso traz.
Que podem – ou não – incluir um
smartphone. Mas quem escolheria seria a própria pessoa, não o mercado em nome
dela.
Repito o que já escrevi aqui sem receio
de me tornar redundante: muitos de nós ficam tanto tempo trabalhando que
tornam-se compradores compulsivos de símbolos daquilo que não conseguiremos
obter por vivência direta. Em promoções, como esta, em que a porteira está
aberta e o convite está feito, nem se fala.
Através desses objetos, enlatamos a
felicidade – pronta para consumo, mas que dura pouco. Porque, como os produtos
que a representam, possui sua obsolescência programada a fim de garantir, daqui
a pouco, mais dinheiro a alguém.
As próprias campanhas contra o
consumismo desenfreado e pela proteção ao meio ambiente podem ser, quando superficiais,
bons pacotes fechados para o consumo imediato e o alívio rápido da consciência,
visando à compra de uma indulgência social ou ambiental.
Já que a contradição é inerente ao
capitalismo e à sociedade de consumo, por que ter pudores ao explorar isso?
Sextas-feiras como esta só ajudam a catalisar o processo.
Boas compras.
Lembre-se, contudo, que montar uma pipa
com papel de seda, organizar um piquenique no parque, ir a algumas exposições
bem legais, pegar emprestado um bom livro, abraçar seu filho ou filha,
perder-se num sarau literário e, é claro, ir à praia, se você teve a sorte
de viver à beira-mar ou na beira de um rio, não custam quase nada.
Mas são tão grandes que não cabem em
caixas de papelão, não podem ser embrulhadas com papel de presente ou mesmo
entregues por serviço de encomendas expressas. E, certamente, você não vai
querer devolve-las decepcionado com a realidade.