segunda-feira, 28 de abril de 2008

A Tulipa, o tatu e a tempestade

Victor estava há meses na expectativa de ver o desabrochar de sua tulipa. Regava com carinho todas as manhãs. Quando ficou por quinze dias em casa, de férias, lembrou-se e disse:

- Minha sensei* falou que cuida das flores pra gente!

Numa manhã de segunda feira, finalmente vimos sua tulipa púrpura. Victor ficou encantado. Perguntou:

-Mamãe, o que aconteceu? Foi mágica?

(Tudo o que ele gosta e não sabe explicar, pergunta para os adultos se trata-se de mágica.)

-Não filho, não foi mágica. Foi o seu cuidado. A semente virou flor porque você cuidou dela!
-Ela não é linda mamãe? Minha chuurippu**...
-É sim Vic, todas as flores são lindas!

Mas nós não sabíamos que as tulipas têm vida curta. Depois de uma semana, o Vic voltou triste da escola e a primeira coisa que ouvi dele foi:

-Minha chuurippu morreu, mamãe!

-Filho, as flores são lindas, mas morrem um dia. E outras nascem...
Ele ficou calado.

À noite, Alex desavisado, contou para o Victor uma história sobre um menino que amava muito a sua florzinha e cuidava bem dela.
Quando a história chegou ao fim, Vic estava chorando baixinho. Lembrou-se de sua "chuurippu" e contou para o papai que sua florzinha tinha morrido.

Explicamos a ele, mais uma vez, que as plantas nascem, crescem e morrem. Mas que outras novas nascem...Abraçamos o nosso filhote.
Falei que tudo ficaria bem:

-Papai e mamãe estão aqui com você. E outro dia você pode plantar outra semente...
Ele respondeu chorando:
-Mas aquela era a minha chuurippu...

Ficamos todos agarradinhos até o Vic domir.
Outro dia, novo dia. O luto já havia sido feito.

Uma semana depois, nosso menino, de olhos grandes e brilhantes, voltou alegre da escola. Estava com uma caixa de leite cortada ao meio e entreaberta.
-Que tem aí dentro, filho?
-É o meu bichinho! Olha...
-Que?!
-Este é o meu dango-mushi***!

Um tatuzinho encontrado no jardim da escola, era a bola da vez.

-Você falou que no apartamento não pode ter cachorro, nem gato... Esse é bem pequenininho e não faz sujeira. Daijoubu****, né, mamãe?
-Filho, talvez o Sr. Tatu Bolinha prefira ficar passeando no jardim da escola. Tatus gostam de terra e de plantas.
-Não, esse aqui é diferente dos outros. Ele é meu bichinho, vou cuidar bem dele!
-Hmm... Você pode experimentar, mas ele vive poucos dias, tá?
-Mamãe eu vou cuidar bem dele!
-Tudo bem, só quero que você saiba que ele vive poucos dias.

Mais tarde...

-Mamãe, eu perdi a Tatu Bola! Mamãe, me ajuda achar ela!
-Filho, talvez ele tenha saído para procurar uma plantinha...
-Mamãe, se ela tentar atravessar a rua, ela vai morrer!
-Filho, está tudo bem. Deixe o tatuzinho passear. Acho que ele já encontrou alguma planta, aqui mesmo, dentro do shopping...

Mas o menino Victor ficou frustrado. Continuou olhando para o chão enquanto saíamos do shopping. Ficou calado até chegarmos em casa. Depois voltou, aos poucos, a conversar.

E a vida continua...
Por esses dias:

-Mamãe, quando a gente voltar para o Brasil eu posso ter um cachorrinho?
-Pode sim, filho.
-E ainda falta muito pra gente voltar pro Brasil?

... Navegar é preciso. Sonhar também.
* sensei = professora
**chuurippu = tulipa
***dango mushi = tatu bolinha
**** Daijoubu = Tudo bem

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Rir e recomeçar

Estive conversando com a Fatima. Ela é jornalista e também sentiu-se pressionada a sair do nosso Brasil em busca de um lugar ao sol. (Veio para o Nihon, onde ele é nascente. (Dããããã...)).
Fatima está por aqui trabalhando um pouco em sua área, um pouco em outras. Ela destacou um detalhe interessante da vida aqui. Estamos num país que nos permite viver e manter família lavando pratos, se for preciso. De onde viemos, não importa o quanto tenhamos estudado, o retorno tem sido humilhante há tempos.
Nossa conversa me fez lembrar de situações para as quais não pretendo voltar.
E como o bom humor ajuda a gende a não desmoronar, vamos rir e tentar um recomeço...Afinal, "sou brasileira e não desisto nunca" (hehe)

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O preço


Meu celular é praticamente mudo já que não conheço muita gente por aqui e destas, poucas têm o número dele. Na verdade meu telefone é útil por causa da escola do Victor. Podem me contactar em caso de emergência. Também é útil por causa do Alex que trabalha em outra cidade e pode querer falar comigo durante o dia.
Meus dias aqui são como meu celular, bastante silenciosos. Quase nada acontece. A vida na roça é bem pacata e os acontecimentos são bem previsíveis, com eventuais turbulências ocasionadas por questões de saúde, cocôs de gatos ou aquelas outras questões de vizinhança que já comentei em posts antigos.
Ontem foi um dia de rara aventura. Tive imprevistos. Lidei com gente.
Alex sempre me conta como é a relação dele com seus colegas de fábrica e me alerta: "Chegando ao Brasil, você vai precisar de alguns meses de reinserção social." Ele acredita que vou levar um choque ao redescobrir a vida em um grupo maior de pessoas.
O palpite do Alex é coerente.Estou mais alien a cada dia...
Excepcinalmente ontem, três pessoas tentaram telefonar para mim num período em que eu estava usando o celular com uma quarta pessoa.
Este foi o começo da diferença em meu singelo cotidiano. Mas o tumulto mesmo veio mais tarde, quando fui atrás de uma senhora que não atendia ao meu telefonema resposta...
Ela abriu a porta com olhos de raiva e me disse muitas coisas. Estava bem alterada. Acho que posso resumir as palavras que ouvi em três queixas:
1)"Por quê VOCÊ "nunca" atende aos meus telefonemas?"
2)"Por quê VOCÊ ME desmerece?"
3)"Por quê VOCÊ faz ISSO SÓ COMIGO?"
Fiquei sinceramente comovida. Expliquei para ela que, por incrível que pareça (!), eu estava com alguém ao telefone, mas que logo que foi possível eu retornei a sua ligação... Pedi desculpas pelo mal entendido. Expliquei que não era algo pessoal etc.
A "Dona" quis ver meu celular, para confirmar que eu estava mesmo atendendo uma chamada no período em que ela telefonava para mim...Embasbacada, fui entregando o aparelho para ela ao mesmo tempo em que me perguntava se isto estava mesmo acontecendo e se isto poderia estar certo em algum lugar do mundo...Pensamentos, lembranças e projeções me ocorreram em segundos...(Eu estava numa situação bem delicada.Esta senhora me socorreu numa manhã quando eu estava de vômito em vômito, numa crise aguda de dor, por causa do cálculo renal. Também se ofereceu para fazer a tradução da minha consulta no dentista. Aceitei o favor oferecido quando ela me informou -e isto não me surpreende mais por aqui- que o dentista não atende pacientes que não falam japonês, ou que estejam acompanhados por intérpretes...)
Enfim, acho que pela lei da sobrevivência, mais que pela política da boa vizinhança, eu cedi. Entreguei nas mãos da "dona" o meu celular. Ela conferiu se o que eu disse era verdade e informou à besta aqui, um novo horário de consulta.
Mais tarde, no caminho para o consultório, fui informada pela "dona" que ELA tinha providenciado a SUA filha pra cuidar do MEU filho, junto com SUA neta, durante o NOSSO compromisso...
Fiquei constrangida, agradeci e tentei explicar que o Vic ficaria bem na sala de espera, vendo revistas ou brincando. Minha opinião não fez diferença, claro.
Quando fomos deixar o Vic na casa da moça, já cheguei pedindo desculpas pelo incômodo e sua filha me falou baixinho: "Depois a gente conversa sobre a minha mãe" e deu uma piscada...
Outro dia, ouvi por aqui mesmo: "Ninguém é bonzinho. Nada é gratuito nessa vida. Nada!"
Além do japonês, tem outras coisas difíceis que estou aprendendo aqui no arrozal. Lidar com inusitados pode ser útil.


ps:Acho que eu poderia ter começado assim, hoje: "Meu querido diário..."

domingo, 13 de abril de 2008

Ventos do Oriente


Acho que a tv de um país revela bastante, e modela também, a cultura de seus nativos.
No Brasil, pelo menos, isso é facilmente notável e verdadeiro.
O assunto que vou tratar aqui é frequentemente visto na tv japonesa, em desenhos animados, programas de auditório e outros. Pela frequência e diferença, chamou minha atenção e quero compartilhar mais essa estranha experiência com meus amigos brasileiros.
O fato é que não sei como abordar sobre o flato. Sou brasileira e tenho meus pudores de ocidental. E pelas nossas bAndas, pum é assunto de foro privadO.
Enquanto no Brasil os programas de auditório, as novelas, enfim, o circo é montado em torno da sexualidade e da criminalidade, os japoneses deleitam-se com estrépidos puns. Outra coisa que diverte bastante os nipônicos são competições de erucção e de comilança. Confesso: acho o humor dos japoneses pra lá de esquisito...
No Brasil aprendemos desde criancinhas a controlar nossas ventosidades diante de outras pessoas. Se uma criança deixa escapar um pum entre os coleguinhas vira motivo de piada e sua vida escolar pode passar a ser um pesadelo por conta do incidente. Tive um colega que passou por isso, foi apelidado de Bufa. Depois de um episódio desastroso, nunca mais o loirinho foi chamado pelo nome...Nunca mais! Isso pode ser trágico para um adolescente... "Bufa" talvez tivesse sido promovido a herói da escola aqui no Nihon, representante de classe, o garoto do ano...Sei-lá...Talvez naquele fatídico dia, meu colega estivesse fazendo a coisa certa no país errado...
Aqui, não. Pum e arroto são aceitos entre colegas, não apenas, aliás! Já levei alguns traques em filas de supermercado, por exemplo. O pior é que as pessoas nem disfarçam, mudando de fila,ou algo assim. Agem com a mesma naturalidade como agimos quando bocejamos. (E eu imaginava as japonesas tão meiguinhas...Olha só, quanto preconceito!)
Quando fui compartilhar esta minha estranha experiência com outros brasileiros que vivem aqui, descobri, como o marido traído da história clássica, que isso por aqui é muito comum (refiro-me ao pum, não ao marido traído, que também pode ser muito comum,mas disso eu não sei). Todo mundo tinha alguma experiência com um f(L)ato cultural japonês pra contar...De onde concluí que as agências de viagens deveriam ser mais honestas com os estrangeiros, precavendo cada aventureiro sobre um dos outros choques culturais importantes. Mas não, eles insistem em ressaltar aquelas informações básicas que todo o mundo já sabe: "Come-se com hashi, o motorista senta-se ao lado direito, cumprimenta-se inclinando o corpo para frente e não apertando as mãos e blá blá blá..."
Quem não conhece aquele discursso sobre o quanto a cultura japonesa preza pelo sossego do próximo, não gosta de causar incômodo aos semelhantes, é muito disciplinadora, etc? Lamento que a forma como "enfrentam" os gases humanos por aqui fique fora desse discurso do "modelinho básico- padrão". Afinal, é uma questão cotidiana importante que implica na qualidade de vida de todos, não?
Estranho pra gente.Para eles, normal, no máximo engraçado...E se você for muito bom nisso, de repente, pode ficar famoso num programa de TV e ganhar uma grana! Convenhamos, mais fácil que entrar para um Big Brother, hein?

sábado, 5 de abril de 2008

Escolhas

"Uma pequena flor é trabalho de eras" -William Blake

Frase tão simples e tão apropriada! Tenho pensado nela, quase que diariamente, desde que o amigo Gu (Coelho) escreveu a "bem-dita" (e escrita) para mim.
Por estes dias a frase está mais vívida em meus pensamentos. Tenho tentado cultivar com o melhor de mim uma pequena bela flor. Uma escolha que fiz, entre outras tantas na vida.
Estou em paz com a minha decisão de não voltar a trabalhar numa escola, nesse momento. Estou feliz por participar ativamente do desenvolvimento e da aprendizagem do meu filho. Tenho aprendido bastante com ele também. Nunca alfabetizei uma pessoa antes e a experiência tem sido emocionante. Vê-lo e ajudá-lo a desenvolver o seu raciocínio linguístico tem sido uma experiência muito especial, como mãe. E, se por um lado tenho tido dificuldades técnicas (não sou pedagoga), por outro, tenho tido a felicidade de presenciar este momento único na vida do meu garotinho...Momento mágico :)
Fazemos nossos percussos através de nossas escolhas. Acho uma grande infelicidade quando assassinamos a nossa liberdade de escolha para percorrermos caminhos que outros definiram como bons ou ruins. Já fiz isto muitas vezes. Mudei. Espero continuar sentindo que estou fora da gaiola.
Ainda há muitas outras coisas que quero fazer em minha vida. Mas sinto que, neste momento, esta minha pequena flor requer mais dedicação.
E é assim que quero fazer cada trabalho. Quero fazer o que eu gosto, o que eu quero, o que eu escolher. Para que eu possa fazer com prazer e dedicação.
Sou o que faço de mim e tenho sempre a liberdade de me reinventar. Enquanto eu viver.

Ps: O Vic continua frequentando o yoochien. Japonês na escola, português em casa :)
Seus horários variam em cada época do ano, conforme a estação. Oscila entre às 9h da manhã e 15h. Nunca mais cedo ou mais tarde.