segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Casamentos, funerais e outros fantasmas

Nunca fui muito sociável. Não gosto de agito, lugares cheios de gente, traje a rigor e outras convenções sociais. Sou praticamente aquele estilo bárbara, mulherzinha das cavernas mesmo, aos olhos da gente fina- claro. Mas é assim que sou. Já aprendi a conviver comigo. Como vivo em sociedade e dela preciso, na medida do possível, me esforço para o bem comum. Exemplos disso: todos os casamentos e funerais que já fui. Casamentos e funerais não são os únicos eventos que me desgastam, mas são -de longe – as situações mais desconfortáveis.

Lembro-me de ter participado de 5 cerimônias de casamento. Em duas delas fui testemunha (vulgo madrinha). Foram casos muito especiais de "amigos-irmãos" que se casaram. Dizer não para eles seria absurdo. Mas tive momentos reais de alegria nessas duas ocasiões. Estava feliz pelos noivos. E num deles tive o prazer de rever muita gente querida, de quem tinha sinceras saudades.
O terceiro casamento que trago em minha memória foi o de uma companheira que tive durante a graduação. Tratava-se de um casal querido, que acompanhei desde antes do início dessa construção romântica-amorosa. Eu não tinha nenhuma desculpa plausível para não comparecer ao evento do ano. Fui lá e acabou sendo bacana também. Encontrei vários bons colegas da Unicamp e a realização do sonho da minha amiga noiva, de se casar com aquele rapaz, me deixou alegre. Foi uma cerimônia singular. Tive a sensação que de fato estava presenciando uma história que teria “final feliz”.
Houve uma outra cerimônia à qual fui praticamente obrigada a ir. Meu pai fez um drama e disse que não admitiria minha ausência num evento tão importante para o amigo dele. Embora eu já não fossse mais uma garotinha, desobedecer a meu pai continuava sendo muito pra mim.
Além desses três casórios, fui ao meu próprio. Esse aí não tinha jeito. Não podia mandar representante, dar desculpas, nem casar por procuração. Tive que encarar o ritual. Fantasiei-me de noiva, senti-me uma “drag-queen”. Sentia meu rosto pesado de tanta maquiagem que me tacaram no rosto. Gostei do meu cabelo. Ficou mais natural que a maquiagem. Flores do campo presas aos fios, muito singelo, como eu gosto. Quanto ao vestido, até eu decidir como seria o modelo já estávamos à uma semana do evento. Fiquei meses vendo revistas de noivas e nenhuma me agradava. Achava tudo muito pomposo, suntuoso, arrojado. Chique...Enfim, nada que combinasse com meu perfil- eu pensava. Por pressão da costureira e de minhas tias, que quase morreram de ansiedade por causa da minha indecisão, sentamos juntas e fizemos o desenho de um modelo. Fizemos, não. Elas fizeram. Eu falava e elas “desenhavam” minha fantasia para a festa.
Ficou um vestido como eu gostaria que fosse: bem simples.
Escolhi fazer a cerimônia num sábado pela manhã. Poucos convidados. Foi uma cerimônia razoável, no meu ponto de vista. Ambiente clean, com pouca gente. Ao invés de usar salto alto, como manda a tradição, casei-me de sapatilha (para o horror e espanto das mulheres). Bem mais confortável e natural. Descobri que a base do bouquet era de ferro na hora que me deram o acessório para eu segurar. Uma desgraça... Lindo, mas pesado. Papai ficou feliz e orgulhoso que só! Meu irmão, desconsolado, sentou-se no canto esquerdo do último banco do templo. Esbaldou-se de chorar. Não se conformava com a loucura que eu estava fazendo. Achava que eu era muito nova (não era!), despreparada (era mesmo...) e que o noivo não era “o cara” (mas isso é coisa de televisão...). Quanto ao meu pai, notei que seus olhinhos se encheram de lágrimas, mas ele não derramou uma gota. (Eu pelo menos não vi.) Diria que ele quase morreu de felicidade. Quase. Pra morrer mesmo, ele esperou três meses depois da cerimônia. E nem foi de felicidade. Foi de depressão. O velhinho dizia que queria me ver casada (de branco!). E viu! mas antes de nossa partida pra Alemanha bateu com as botas”. Fora que ele queria serviço completo: queria me ver casada e que lhe desse netinhos. Falei pra ele: casar eu caso, mas netinho... nem pensar! Embora eu ame criancinhas, numa certa época da minha vida concluí que não queria transmitir o legado da minha miséria pra outra criatura, como diria o Machado de Assis. No fim, ou no meio, eu diria, não cumpri o que disse. Depois que meu pai morreu tive um filho. Não foi planejado (como quase tudo na minha vida). Porém, quando soube que estava gestante, apaixonei-me pelo serzinho que em mim habitava e adotei-o com muito amor.

Mas eu ia dizendo que não gosto de casamentos nem funerais. Falei bastante de casamento. Deixe-me contar um pouco das minhas outras experiências mórbidas: refiro-me aos velórios, agora. Bem, já fui em alguns...O primeiro- que me recordo- foi o da minha vó, mãe do meu pai. Eu era bem pequena. Devia ter 5 anos, no máximo. Gostava muito da minha vozinha. Ela cuidava de mim com carinho. Pelo que me lembro, a vovó me protegia dos ataques "malvados" do meu irmão e de dois primos. Eles adoravam passar correndo e me despentear logo depois que ela tinha penteado meus cabelos. Divertiam-se me aborrecendo. Mas eu chorava e contava pra ela, que me defendia de todo o mal: botava todo mundo pra correr. Ela dizia: “Deixa ela quieta! Ela é pequenininha!” Ah, eu adorava minha vozinha...Como ela era doce comigo...
Então, mas eu não sabia o que era velório até que essa minha vó morreu. Papai me carregou para que eu visse o corpo no esquife (acho que foi o meu pai, não sei...) Olhei e, pelo que me lembro, perguntei porque ela estava dormindo ali, no meio de toda a gente. Então ouvi pela primeira vez aquele clássico discurso sobre a morte: que as pessoas dormem e vão para o céu, morar com anjinhos, Jesus e blá,blá,blá... No momento fiquei um pouco triste. Mas logo que desci do colo fui brincar lá fora. Achei aquele lugar bacana: espaçoso, cheio de grama e flores. Incoerente com a tristeza das pessoas, afinal, tinha um jardim tão bonito ali e minha vó tinha ido morar com Jesus, um ser que era-seguramente- todo bondade. Oras, por que as pessoas choravam? Fiquei brincando de pega-pega com outras crianças que estavam por lá...Tristeza mesmo eu senti depois, ao decorrer dos dias, quando estava em casa, e não tinha mais distrações: nem o amplo gramado, com flores coloridas, nem primos, nem vó... Senti saudades quando de fato percebi a ausência da vovó. Até desconfiei que o Jesus não era tão bondoso, como haviam me dito, afinal, ele levou minha vó pra longe...
Lembro-me de uma cena: eu na janela do quarto, olhando para céu azulzinho com algumas nuvens branquinhas que formavam desenhos...Me ocorreu que aqueles desenhos que eu via eram feitos pela minha vó. Que ela os fazia pra mim...Tive uma brilhante idéia: fazer uma escada gigante pra chegar até as nuvens, onde eu poderia rever, abraçar e beijar a vovó. Gastei bastante tempo planejando a escada. Fui pedir ajuda para meu pai. Meu irmão, um pouco mais velho e bem mais espertinho que eu (além de ser o fiel e inseparável escudeiro de meu pai), gargalhou da minha ignorância e tentou me explicar que céu era um "conceito”, não um lugar, ou pelo menos, não era aquilo que meus olhos conseguiam enxergar. Meu irmão sempre foi “o cara” inteligente . Mais maduro, já lia, tinha conversas “sérias” com meu pai e era capaz de me ensinar muitas coisas da vida...Principalmente as coisas mais difíceis. Como por exemplo, porque não deveríamos chamar a polícia- como eu queria- quando nossa mãe brigava escandalosamente com nosso pai... Meu irmão era o cara! Maior que eu, mais forte e inteligente...Um ícone! Sempre tinha boas razões. Genial! Mas essa coisa de céu, honestamente achei muito (abstrata)... Bem difícil de entender mesmo. Na verdade acabou que eu não entendi. Apenas aceitei que minha proposta era ridícula porque a gargalhada e o tom de deboche com que meu irmão tentou me explicar eram muito convincentes de que eu estava sendo bem idiota com aquela história da escada...Enfim, eis as impressões que ficaram do meu primeiro velório...

Mais ou menos um ano depois, fui para segunda aventura funerária. Dessa vez velamos o corpo da minha mãe. Daí a experiência foi mais dramática. Primeiro porque eu a vi morrendo, ninguém precisava me explicar nada. Sabia muito bem do que se tratava aquela multidão em torno do esquife. Segundo porque alguns adultos não queriam que eu entrasse no recinto. Mas eu já era “crescidinha” e protestei. Lembro-me que apelei dizendo -"Mas é a minha mãe!" Falei com ênfase e indignação suficientes para que os familiares permitissem meu a acesso ao corpo. Minha altura já era suficiente para enxergar dentro do esquife. Ninguém precisou me levantar para ver o cadáver. Foi uma experiência muito estranha. Não quis tocar o corpo, lembro-me bem- por questão de higiene. Confirmei dois dos três lugares onde ela havia sido perfurada. Lembrei-me rapidamente da cena da noite anterior. Verifiquei que seu corpo foi vestido com uma camisola verde-água-elegante,que ela gostava. De repente, disparei uma gargalhada nervosa. Alguém me tirou de lá, uma das minhas tias me levou para “passear”, tentou me distrair até o fim do cerimonial para que eu não visse o “enterro”. Acabei vendo essa parte- esquisita-de longe...

Minha terceira experiência foi quando faleceu um vizinho da minha vó materna, que ainda está viva. Era um português, nós o chamávamos de “Seo Abílio”, o marido da “Dona Teresa”. Além de ser vizinho da minha vó, o falecido era vô de um colega meu, da escola. Fui lá, fazer as vezes de "boa vizinha" e de "boa colega de escola". Estava super séria. Chocada. Cumprimentei meu colega como se deve. Fui pra sala onde o corpo estava sendo velado e, quando o vi, percebi que dispararia uma gargalhada . Desta vez, mais experiente, deixei o recinto, por mim mesma, rapidamente. Era já uma adolescente e tinha desenvolvido mais autocontrole. Ao lado de fora do “evento”, troquei olhares com um outro adolescente que estava lá para velar o corpo do seu avô. Mas, como eu, ele também não conseguiu ficar olhando para o corpo morto de seu avô. Ficamos nós dois lá, do lado de fora, nos olhando vivamente. Confesso que essa foi uma experiência estranhamente agradável: trocar olhares vívidos com um garoto em contexto mórbido...Experiência única.

Depois dessa experiência tive algumas outras, mais o menos significativas. Paquerinha em velório, nunca mais. Até porque um dia comecei a ficar séria. Não sei bem como foi que isso aconteceu, mas o fato é que hoje sou capaz de ir a um velório e olhar para o corpo deitado sem dar vexame. Já sobrevivi a vários funerais depois desse, do ‘Seo Abílio”.

No do meu pai, fiquei surpresa com minha atitude. Me comportei como uma adulta de verdade! Nenhum esboço de riso, nem choradeira escandalosa também ( dois extremos considerados inconvenientes). Diria que alcancei uma maturidade, que deixaria papai orgulhoso. Pra falar a verdade, em princípio eu me recusei adentrar o velório. Depois eu pensei melhor e achei que me sentiria mal se não visse o corpo dele pela última vez. Ponderei que era um momento importante. Encarei a situação como uma forma simbólica de aceitar o fato. Enfim, decidi e fui até lá, bem perto. Passei por muita gente viva (ele era bem querido), fui pedindo licença, licença, até que cheguei perto do meu morto. Foi estranho. Aquela face pálida e inexpressiva do corpo não eram dele. Não era o meu pai. Apenas um cadáver. Sem graça, nem desgraça.

De 2002 pra cá, infelizmente fui a outros funerais. Igualmente estranhos e ridículos: o cenário, os cadáveres. A morte é patética. E nós, que vamos restando miseravelmente, damos a cada dia aquele passo inexorável e adiante na grande fila de chegada...

Falo sério quando digo que alcancei uma certa maturidade, nesse sentido. Quando eu bem mais nova, os anúncios de morte-todos- me deixavam muito perplexa. Ao longo dos anos e das experiências tenho aprendido a aceitar que morrer faz parte de nossa história. Certo que as situações podem ser mais ou menos chocantes e inesperadas. Mas a morte sempre ri por último e causa uma espécie de dor irremediável. Tudo bem. Hoje aceito a morte com mais naturalidade. Mas continuo tendo problemas com os velórios ( e os casamentos! Não posso me esquecer deles...) Algumas pessoas falam demais nesses contextos e, geralmente quem fala muito diz bobagens...Alguns esperam ouvir ou ver coisas fantásticas. Juro que outro dia ouvi uma viúva “clamando ao senhor” para que ressuscitasse o seu cônjuge...Fazia declarações de amor ao defunto... Sim! A viúva falava de amor ao corpo morto do homem que, quando vivo, ela dizia não suportar seu cheiro de cigarro...Quem entende?
Tem também aquele tipo “crássico”, que faz discursinho, como se falasse ao morto, mas na verdade tem a miserável intenção de mandar recado aos vivos...
Ai deus! E os "santos" que começam a discutir religião em velório? Pior, tentam converter os vivos pra sua religião. Um horror, parece mercado!
E de repente os defuntos viram heróis, anjos, queridos, pessoas maravilhosas, enfim, as pessoas se falam, se unem e se “amam” como nunca. Praticamente um circo de tenda preta. Um show de esquisitices...

Aff, esse ano está só começando. Se eu não morrer receberei notícias de outras mortes e casamentos. Eventualmente me sentirei na obrigação de ir a um ou outro.
Quanto às cerimônias de casamento já fui vítima de um convite. Situação delicada. A noiva é parente próxima. Oficialmente próxima. Entusiasmada pediu pra eu ser sua "madrinha de casamento”. Logo se vê que a moça não me conhece. Se conhecesse não me faria essa proposta indecente.

Em outros tempos, seria bastante simples e quase fácil eu recusar um convite como esse. Hoje, porém, sofro mais de lapsos civilizatórios. Antes de dar minha resposta perguntei à moça que motivo ela teria pra me atribuir um papel “tão importante”. A resposta dada foi bem simples e muito perturbadora:

-"Fran, ver você na igreja me fará lembrar do seu pai..."

Meu pai, meu pai...Era o típico “bom velhinho” da criançada. Cheio de paciência e humor, sempre tinha uma balinha no bolso. Contava histórias etc... Paparicou muito as crianças da família. Muitos dormiram embalados em seu colo. Parece que todos os sobrinhos que tiveram oportunidade de conviver com ele carregam boas lembranças do meu papa.

Disse sim à minha “priminha”. Mas espero que acabe aí minha cota de sacrifícios em prol da vida em comunidade no ano de 2012. Que as pessoas namorem bastante, divirtam-se muito, sejam felizes para sempre, como acham que isso deve funcionar. Mas peço uma coisinha, uma só: não me comprometam. Desejo muitas felicidades aos noivos, consolação e paz aos enlutados. Mas se for rolar teatrinhos, não quero fazer parte das encenações.
Pronto falei!

5 comentários:

Henderson disse...

Isto me lembrou um texto do carpinejar...

http://pavablog.blogspot.com/2010/05/pelo-bem-de-sua-memoria.html

Anônimo disse...

Releia seu texto.Precisa de correções.

Fran disse...

Henderson, obrigada pelo texto do Carpinejar. Não conhecia.

Anônimo, obrigada pela obervação importante. Vou reler meu post para consertar os estragos, mas não agora. Ficou grande demais deve ter mesmo muitos erros, né?
Outro dia dedicarei um tempinho pra seguir seu conselho. Mais ua vez, obrigada!

Simone disse...

Fran, eu adorei..., fiquei triste em alguns pedaços, talvez porque tenha identificado parte da minha história em tudo que li. Ahhh, não precisa ir no meu velório (rsrs), só me lembro de ter ido até hoje do vovô (eu também era muito pequena e fiz coisas parecidas como as que você fez), do papai (essa doeu), do meu primo querido que teve uma morte muita besta (fiquei com raiva) e da vovó (fiquei aliviada).

Beijos.

Si-Cris ou Shimone Shan

Fran disse...

Si-Cri, vc escreveu da forma como fala. Talvez, se vc não assinasse eu adivinharia que foi vc quem deixou esse comentário.
Arigatou!
Bjo.