Na última noite tive um pesadelo. O Brasil estava novamente sob o domínio militar. Acordei suando e pensei: preciso aquietar o meu coração. Focar mais em coisas e imagens boas. Fazer a minha parte como cidadã e sossegar quanto ao que deixam de fazer e sobre o que dizem os outros. Concluí que diminuir o blá blá blá em meu face já era um começo para apagar chamas (desnecessárias). Afinal, já deu pra saber quem pensa o quê... Aliás deu pra perceber, quem pensa, quem pensa que pensa, quem simplesmente nem quer pensar etc..."Melhor dar um tempo, ao menos publicamente, desse assunto"- pensei. Mas li esse texto do Observatório, recomendado por uma colega e achei tão convidativo que recomendei lá (através do face). Agora aproveito e compartilho nesse meu outro espacinho tb. Quem tiver disposição e interesse em REFLETIR sobre o tema/título do post poderá aproveitar.
Boa leitura, então.
Aquele abr@ço!
Por José Isaías Venera em 21/10/2014 na edição 821 do Observatório da Imprensa
O engano faz parte da estrutura da percepção da realidade. Não é por acaso que o discurso publicitário está no centro da sociedade de consumo. Imaginem uma peça publicitária de uma marca de cigarros que descrevesse todos os componentes que contém no produto? Ao contrário, é uma vida de realizações que é associada ao produto. O engano naturaliza-se. Integra à subjetividade. Outro nome para isso é fetiche. O fetichista é aquele que se deleita na fantasia, na pura imagem que já perdeu totalmente sua referencialidade, omitindo uma verdade insuportável.
Com isso, passamos a entender porque
chavões criados pela grande mídia, como “O caçador de marajás” na campanha de
Fernando Collor de 1989, foram rapidamente assimilados. A bola da vez agora é o
combate à corrupção. Nessa lógica maniqueísta de campanha e de apelo da grande
mídia, o cientista político Juarez Guimarães mostra, no artigo “Após o ‘caçador
de marajás’ o ‘caçador de corruptos?’”, publicado no portal Carta Maior, que a
campanha de Aécio Neves “surge como um insulto à inteligência e à consciência republicana
do brasileira”. Estamos de pleno acordo. Mas não é pelo paradigma do sujeito da
razão que podemos entender os rumos dos votos. E isso independe do resultado
das eleições. Ora, quando a campanha fica centrada no tema corrupção, é a
própria política que fica de fora, já que o debate é reduzido a um gesto
antipolítico.
Há pouco mais de um ano, o país foi sacolejado pelos
protestos de junho, que poderiam ser interpretados como um sinal de esgotamento
da democracia representativa. O tema não entra na pauta desta disputa política
– nem da grande mídia. O que se vê, novamente, é a tentativa de construção de
um novo herói. Basta um rápido olhar para o comportamento na imprensa para
constatar que o discurso publicitário impera, contraditoriamente, no jornalismo.
Na revista Veja (11/10),
Aécio Neves aparece como se estivéssemos olhando para uma imagem de santinho de
campanha política. Na revista Época,
de 20 de março de 2006, o santinho foi Geraldo Alckmin com uma linha de apoio
que o relacionava a Juscelino Kubitschek, período posterior ao ministério JK
exibida pela Rede Globo, em um longo processo de construção do que deveria ser,
para a Globo, o novo herói da nação. Ou, ainda, a clássica edição da Veja de 1989, com a manchete:
“Collor de Mello – O caçador de marajás”.
A
monstruosidade entra em cena
Falar o que vem a mente. Princípio da
associação livre é também um dos fundamentos que faz da disposição analista e
analisado – este segundo deitado no divã de costas para o primeiro, um método
para o início da clínica após as entrevistas. Sem o contato olho a olho,
evita-se que a transferência entre paciente e analista interfira nas
associações, ou seja, no falar tudo que vem a mente. Ora, é evidente de que não
há nenhuma relação da psicanálise com o modo como os sujeitos interagem nas
redes sociais. Mas há, porém, em comum, a força deste princípio, de que, quando
o outro de carne e osso está ausente no campo de visão, o sujeito projeta-se
como se fosse o centro de todo o poder, deixando, muitas vezes, expressar toda
a sua monstruosidade. Não por acaso, gestos de homofobia, racismos, xenofobia
invadem as redes socais.
Ataque
aos nordestinos
“Nordestino não é gente, faça um
favor a SP, mate um nordestino afogado”. “Médicos do Nordeste, causem um
holocausto por aí.” Esta segunda abominação moral e cognitiva (para usar os
termos da filósofa Marilena Chauí) é de uma integrante do grupo do Facebook
“Dignidade médica”, que ganhou repercussão em diversos artigos condenando essa
prática. O discurso assemelha-se ao do nazismo sugerindo “holocausto” ao
nordestino. Acrescido ao depoimento do ex-presidente da república, Fernando
Henrique Cardoso, de que os votos expressivos para a candidata Dilma Rousseff à
reeleição mostram que o nordestino é “menos informado”. Vimos um alinhamento
entre ambos discursos que permitiu incendiar mais ainda o preconceito.
Não há dúvida de que não se pode reduzir
essa forma de pensamento às pessoas que moram na região A ou B do país, mas
trata-se de um modo de subjetivação que tem mais expressão em determinados
lugares. O que se percebe pelas evidências é que há um movimento expressivo, e
isto não é de hoje, que caminha para a naturalização e a afirmação de uma
superioridade de grupos que, no fim das contas, passa pela assepsia do capital,
ou seja, quem é pobre é “malandro”, “burro”, “desinformado”, “vive nas costas
do governo” etc.
Não foi justamente o Sudeste e o Sul
onde se concentraram o maior número de votos para Aécio Neves e Levy Fidelix?
Logo Fidelix, o homem do “aparelho excretor”. Não é função do sistema excretor
eliminar o que o corpo não necessita? Vejamos outra violência: “Nordestinos do
caralho, tão com medo de tirar a merda do bolsa família”. Não seria a expressão
máxima do reacionarismo querendo transformar os nordestinos na matéria
produzida pelo aparelho excretor? Esse é um dos motivos pelos quais é
suportável para aqueles que se acham superiores debater corrupção de uma forma
rasa, para não olhar no espelho e deparar-se com sua própria monstruosidade.
Ora, a violência subjetiva não deveria estar em pauta no debate político?
É evidente que muitos eleitores de Aécio
não compactuam com essas atrocidades que circulam pelas redes sociais, mas é de
pensar-se: se os internautas que expressam ódio pelo nordestino são eleitores
de Aécio, já que os votos à Dilma foram o estopim dessa violência, é porque
estão dadas as condições, no mínimo subjetivas, para esse apoio.
Se
Zizek dominasse o mundo
Slavoj Zizek, em um pequeno texto que
tem de ser lido como uma ironia (como piadas extravagantes no qual o filósofo
termina se perguntando se não vivemos em um mundo como este), deixa pistas de
como governar um mundo marcado pela desigualdade. Publicado no Blog da
Boitempo, em “Se eu dominasse o mundo” Zizek instituiria no final de suas
medidas extravagantes um ritual canibalesco entre amigos, de que no início de
um diálogo dever-se-ia primeiro dedicar alguns minutos “com xingamentos
grosseiros e sem pudor, ofendendo uns aos outros”. É evidente que não é disso
que se trata nas redes sociais, já que não estamos falando de amigos e não se
ouve o outro na sua diferença para depois iniciar um diálogo civilizado, que
pressupõe trocas de ideias.
Contudo, outras situações descritas por
Zizek são tranquilamente relacionadas à nossa realidade, como a de simular um
golpe (quando, às vezes, ouvimos que o governo atual quer implantar o
comunismo, cercear a liberdade de imprensa, depravar a sociedade com circulação
de apostilas que fazem apologia a homossexualidade etc.).
Como entender esse fenômeno de ódio aos
nordestinos, que não deixa de ser ódio à democracia? Um caminho seria pelo
processo civilizador que tem a função de cobrir totalmente nossos desejos mais
íntimos, e o que não cobre fica sacolejando a ponto de que, quando consegue
chegar à superfície (ou passar a barreira da repressão), aparece como uma
monstruosidade (sintoma). Assim, seguindo a ironia de Zizek, deveríamos ter
sessões rotineiras para extravasar sentimentos, como um ritual sucessivo de
catarse.
Catarse fascista
As redes sociais poderiam ocupar este
lugar de grande catarse, mas, infelizmente, é uma catarse fascista, no sentido
de que não é dado o direito do outro existir na sua diferença. Mailena Chauí,
em entrevista à Rádio Brasil Atual, definiu bem a violência fascismo: “o que
caracteriza a violência fascista é não suportar a diferença, a alteridade, e
partir para a eliminação”.
O racismo, a xenofobia, a homofobia etc. são
alimentados por uma dedução simplista que se movimenta nobackground da racionalidade
técnica: “se pobre tem baixa escolaridade, é desinformado pelo simples fato de
não ter capacidade para compreender a realidade”; ou, ainda, “pago meus
impostos para sustentar um bando de vagabundos”. Essas não seriam deduções para
alimentar e naturalizar uma superioridade, já que o que se combate no fim são
os programas sociais que tem a função de criar condições favoráveis para que
sujeitos em posições desfavoráveis passem a ter as mesmas oportunidades? Não
seria esse o motor do ódio, por levar o outro ao menso nível dos que se
consideram superiores? Ora, isso fere o próprio falo do exibicionista, ao ter
sua self colocada na vala comum.
Em certa medida, as redes sociais têm se transformado
ora em um espaço de catarse fascista, ora em um espaço de exibicionismo – como
se o falo (que tem hoje seu principal significante metonímico – as selfies) precisasse ser
frequentemente contemplado e mediado pelo grande espelho, o ciberespaço. Quando
a potência do exibicionista é colocada em xeque, vê-se todo tipo de violência
(a impotência é a verdade aterrorizante).
O consumo da própria imagem
O sujeito consumidor é o alvo. Todo mundo busca fama.
Quanto mais curtidas no post,
mais potente. Descartes cairia de joelhos. Do “penso logo existo” para o “sou
visto logo existo”. Quando a imagem é arranhada, o monstro ganha espaço. O que
sustenta essa monstruosidade? Não há dúvida, vem da outra cena (inconsciente)
que faz transpor os conteúdos recalcados.
Enquanto o canibalismo fascista é potencializado, os
usuários das redes sociais são alvos de pesquisas, como se o trajeto feito no
ciberespaço deixasse marcas suficientes para direcionar uma mensagem, oferecer
um produto, receber um estímulo para bajular seu ego e cativá-lo. A síntese
mais estarrecedora foi apresentada na abertura da reportagem “Manipulados pela
internet”, publicada na IstoÉ (9/7),
que reproduz um diálogo com Mark Zuckerberg, criador do Facebook, em 2004,
quando ele ainda era estudante: “– Se você precisar de informações sobre
qualquer um de Harvard, me pergunte. Tenho mais de quatro mil e-mails,
endereços e fotos. – Como você conseguiu isso? – perguntou o colega. – Eles
confiam em mim. Estúpidos”.
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